O facto é chocante e dá que pensar. Portugal tem mais 250 mil funcionários do que a Inglaterra apesar de ter cinco vezes menos habitantes.
Cavaco Silva, já depois de ter sido primeiro-ministro, disse um dia, para escândalo geral, que a única forma de o Estado se ir livrando deste sorvedouro de impostos era esperar que os funcionários fossem morrendo. Despedi-los era sobrecarregar a Segurança Social, reformá-los era lançar mais pandemónio no já frágil sistema. Cavaco esqueceu-se de acrescentar que muitos dos milhares de funcionários que entraram para os quadros no governo do engenheiro Guterres tinham sido contratados a prazo no seu tempo de vacas gordas, isto é, quando o défice chegou a atingir 9 por cento.
Tudo isto me lembrou um amigo que há 15 anos trabalhava, e continua, numa repartição no Terreiro do Paço e me contou uma vez o seu dia-a-dia atribulado de funcionário público. Imaginem o furor:
«Chego às nove e meia à repartição, já com a tolerância de meia hora dada pelo chefe. Assino a entrada e a saída de ontem à tarde no livro de ponto. Ligo o candeeiro da secretária, penduro o casaco, ponho o rádio baixinho na Antena 2. Está-se bem. O ambiente de trabalho está criado. Posso ir tomar o meu pequeno-almoço e ler as últimas no Martinho da Arcada. Até às 10 e um quarto ninguém me vai maçar.
Volto à repartição, passo pelo gabinete do chefe. Lá vão umas bocas sobre o jogo de ontem à noite do nosso clube. Óptimo. O chefe está bem disposto, é um pândego cá dos meus. Continua a gostar da minha cumplicidade futebolística e para o ano há promoção com diuturnidade. Esta ninguém ma tira mesmo que a gente perca o campeonato!
Já recomposto deste início de manhã infernal, sento-me finalmente à secretária. O tempo voa . Já são 11 e um quarto. O melhor é aproveitar para fazer umas chamadas. Ligo o zero. Peço à telefonista linha para uma chamada de serviço. Faço algumas chamadas pessoais mas isto de ter de trabalhar e de resolver os meus problemas é uma maçada. O melhor é que já passa do meio-dia, o chefe já desceu para a cantina e eu tenho de me pirar. Se não aproveito a hora de almoço para mim quem a há-de aproveitar? Regresso às duas e meia. Assino a saída da manhã e a entrada da tarde já com a meia hora de tolerância da praxe. Que seca!
São quase três horas. A fome aperta. Agora, que já cá estou, posso ir almoçar. Nunca falha! Isto de poder comer com o ponto assinado é um descanso. O pior é que quando chegar à secretária depois das três e meia vou ter de inventar qualquer coisa para trabalhar. Um problema para hoje vinha mesmo a calhar e amanhã já tinha que fazer. É assim que se mantém viva a chama do trabalho!
Entretanto já são quatro e meia. Vou distrair o chefe com mais umas bocas e piro-me. Não me pagam para fazer horas extras. Uff! O que vale é que para a semana há feriado com ponte. Colo um atestado a estes dias e dá para ir de férias na boa para um sítio onde ninguém me possa encontrar a passear de baixa.»
A história não é inventada e esse meu amigo continua a trabalhar, desculpem, a ser funcionário na mesma repartição.
Há dias convidou-me para tomar café às nove e meia (estão a ver porquê) no Martinho da Arcada. Em 15 anos, alguma coisa mudara. Já tinha computador e banda larga no serviço mas a desilusão tinha-se instalado. Tinha construído uma carreira com a reforma antecipada como meta. Agora, aquele «ladrão do Sócrates», ainda por cima em quem ele tinha votado, tirara-lhe o sonho.
À volta do meu amigo lá estavam os colegas que eu conhecera, agora muito mais velhos, cabisbaixos, derrotados da vida.
Nunca fizeram nada para sair daquela mediocridade mas a verdade é que também nunca ninguém se ralou com isso.
Luiz Carvalho in Expresso
Viver à Portuguesa
7 years ago